sábado, 25 de dezembro de 2010

Possíveis fatores etiológicos para desordens temporomandibulares de origem articular com implicações para diagnóstico e tratamento


Artigo publicado na revista Dental Press Journal of Orthodontics, no ano de 2010 (May-June;15(3):78-86), pelos autores Aline Vettore Maydana, Ricardo de Souza Tesch, Odilon Vitor Porto Denardin, Weber José da Silva Ursi, Samuel Franklin Dworkin.

Os fatores envolvidos na etiologia, diagnóstico e tratamento das desordens temporomandibulares (DTM) de origem articular foram revisados. Critérios específicos de inclusão e exclusão para o diagnóstico de DTM são essenciais, mas apresentam utilidade limitada. Atualmente, os Critérios Diagnósticos de Pesquisa para Desordem Temporomandibular (RDC/TMD) oferecem a melhor classificação baseada em evidências para os subgrupos mais comuns de DTM. 

O RDC/TMD inclui não apenas métodos para a classificação diagnóstica física, presentes em seu Eixo I, mas ao mesmo tempo métodos para avaliar a intensidade e a severidade da dor crônica e os níveis de sintomas depressivos e físicos não-específicos, presentes em seu Eixo II. Embora historicamente as más oclusões tenham sido consideradas como fatores de risco para o desenvolvimento das DTM, incluindo as predominantemente articulares, em muitos casos associação estabelecida entre essas variáveis parece ter tomado direção oposta. No que diz respeito aos desarranjos internos da ATM, os resultados de estudos prévios sobre a redução induzida do ramo mandibular, secundária ao deslocamento anterior do disco articular, indicam que o reposicionamento do disco deslocado em crianças ou adolescentes jovens pode fazer mais sentido do que previamente imaginado. O uso terapêutico de suplementos alimentares, como o sulfato de glicosamina, parece uma alternativa segura ao uso dos medicamentos anti-inflamatórios normalmente utilizados para controlar a dor relacionada à osteoartrite da articulação temporomandibular (ATM), embora a evidência em torno de sua eficácia para a maioria dos pacientes de DTM não tenha sido completamente estabelecida.

INTRODUÇÃO

As desordens temporomandibulares (DTM) referem-se a um conjunto de condições que afetam os músculos da mastigação e/ou a articulação temporomandibular (ATM). Essas condições falharam em demonstrar uma etiologia comum ou base biológica clara para sinais e sintomas relacionados e, por isso, são consideradas como um grupo heterogêneo de problemas de saúde relacionados à dor crônica. Sintomas característicos — como dor muscular e/ou articular, dor à palpação, função mandibular limitada e ruídos articulares — podem ser prevalentes, isoladamente ou associados, em até 75% na população adulta. Apesar disso, o surgimento de alguns sintomas, como ruídos articulares, não parece estar relacionado, na maioria da população, à dor ou outros fatores fisiopatológicos que requeiram tratamento.
A classificação corrente é largamente descritiva, baseada mais na presença de sinais e sintomas do que em sua etiologia, devido principalmente à incompleta compreensão da relação entre os fatores etiológicos e os mecanismos fisiopatológicos. Contudo, do ponto de vista clínico, é provavelmente irrelevante estender-se à divisão dos chamados subgrupos diagnósticos se todas as desordens dentro de um mesmo subgrupo puderem ser controladas usando procedimentos terapêuticos similares.
Assim sendo, critérios específicos de inclusão e exclusão para o diagnóstico dessas desordens são essenciais, mas somente se testados para determinar sua validade. Atualmente, o Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders (RDC/TMD) oferece a melhor classificação baseada em evidências para os mais freqüentes subgrupos de DTM, isto é: aqueles subgrupos com os quais os especialistas atualmente concordam serem distintos, com base em critérios que possam ser reproduzidos e cientificamente avaliados.
Assim, o RDC/TMD, um sistema duplo de eixos de diagnóstico e de classificação destinado para a pesquisa clínica da DTM, inclui não só métodos para classificação física dos diagnósticos de DTM (apresentados em seu Eixo I), mas também métodos para avaliar a intensidade e severidade da dor crônica e os níveis de sintomas depressivos e físicos não-específicos (apresentados em seu Eixo II). A confiabilidade do RDC/TMD já foi testada e considerada satisfatória em populações adultas, enquanto em crianças e adolescentes sua validade e utilidade clínica foram demonstradas para o Eixo I, mas ainda não completamente para o Eixo II (apesar de extensivos estudos do National Institutes of Health/NIH estarem atualmente bem encaminhados no sentido de examinar a validade de todos os componentes do RDC/TMD).
O Eixo I do RDC/TMD se refere às condições físicas apresentadas na DTM e tem por objetivo estabelecer critérios diagnósticos padronizados para serem usados em pesquisas científicas. O sistema sugerido é hierárquico, permitindo não apenas o diagnóstico de grupos, mas também a possibilidade de múltiplos diagnósticos para o mesmo indivíduo, estando assim dividido em três subgrupos maiores, representando a grande maioria dos casos clínicos de DTM: dor miofascial; deslocamentos do disco articular; e artralgia, osteoartrite e osteoartrose.
O objetivo do presente trabalho foi abordar os possíveis fatores etiológicos para o desenvolvimento de desordens temporomandibulares de origem articular (grupos II e III de acordo com o RDC/TMD), sugerindo implicações para seu diagnóstico e tratamento.

Desarranjos Internos da ATM

Desarranjo interno da ATM é um termo ortopédico definido como falha mecânica relacionada ao posicionamento inadequado do disco articular da ATM, associado à interferência nos movimentos normais da mandíbula.
O deslocamento do disco articular representa apenas um subgrupo dessas desordens. Quando denominado deslocamento do disco articular com redução, pode ser reconhecido pela presença de estalido em abertura e fechamento da boca, eliminado quando a boca é aberta em posição mantida de máxima protrusão (RDC/TMD Eixo I, Grupo IIa).
Pacientes com deslocamento do disco articular foram caracterizados, do ponto de vista oclusal, pela presença de mordida cruzada unilateral posterior e longos desvios da posição de relação cêntrica para a posição de máxima intercuspidação habitual. Enquanto o deslocamento anterior do disco articular assintomático e não acompanhado por nenhuma outra indicação de DTM (RDC/TMD Eixo I, Grupo IIa) é bem comum (com prevalência de 20-35% na população), os diagnósticos de deslocamento do disco sem redução — os quais não necessariamente precisam estar associados à dor, mas podem estar associados a limitações na abertura de boca (RDC/TMD Eixo I, Grupos IIb e IIc) — são relativamente raros, com frequência de ocorrência variável de 1-5% de acordo com estudos realizados em clínicas de DTM em todo mundo.  Em alguns estudos envolvendo animais, onde deslocamentos anteriores do disco articular foram cirurgicamente criados em coelhos, com o ligamento posterior mantido intacto no côndilo, suas mandíbulas se apresentaram significativamente menores no lado do disco deslocado, o que resultou em um desvio da linha média para o lado acometido. A assimetria mandibular não foi observada no grupo que não teve o disco articular deslocado. Esses resultados sugerem que deslocamentos do disco articular podem preceder o desenvolvimento de assimetrias da mandíbula, e podem, portanto, ser considerados como fatores de risco para o desenvolvimento de má oclusão transversal. Ainda não foi estabelecido se essa seqüência de eventos é relevante para o crescimento e desenvolvimento mandibular de humanos.
A análise biomecânica dos tecidos duros e moles da ATM revelou que esses são normalmente capazes de resistir e se adaptar às cargas funcionais ou pressões que ocorrem durante o movimento fisiológico mandibular. Contudo, esses tecidos não são capazes de suportar compressões por um longo período de tempo, como aquelas, em alguns indivíduos, em determinados níveis, associadas ao apertamento dentário.
Ao avaliar os níveis de pressão intra-articular presentes na ATM de pacientes despertos submetidos a procedimentos de artrocentese, Nitzan encontrou que o apertamento dentário voluntário produziu altos níveis de pressão intra-articular, tão altos quanto 200mmHg. Pressões intraarticulares superiores a 40mmHg excedem a pressão dos capilares periféricos e podem causar hipóxia intra-articular temporária, seguida de reoxigenação assim que cessa o apertamento, com a resultante liberação de radicais livres.
Uma variedade de efeitos dos radicais livres no tecido articular foi descrita, incluindo a degradação do ácido hialurônico, o qual, uma vez degradado, perde a capacidade de inibir a enzima fosfolipase A2 em sua função de quebrar a superfície ativa dos fosfolipídios, que são primariamente responsáveis pelo processo de lubrificação da ATM. O aumento da fricção, juntamente com a ausência de lubrificação adequada, tem por fim o potencial de impedir o funcionamento suave do disco articular em conjunção com o côndilo mandibular durante os movimentos funcionais normais. Isso pode, hipoteticamente, levar ao início do processo de deslocamento anterior do disco articular, como descrito em detalhes por Nitzan.
A observação clínica demonstrou que o deslocamento do disco articular pode estar presente em pacientes assintomáticos, assim como em pacientes sintomáticos. Da mesma forma, a lavagem do compartimento superior da ATM usando o procedimento de artrocentese, nos casos em que havia deslocamento anterior do disco articular sem redução, provou, a curto prazo, ser capaz de aliviar a dor e restaurar as funções mandibulares sem modificar a relação entre o côndilo e o disco articular.
Dessa forma, como os sintomas associados ao deslocamento do disco articular não são sempre consequências desse desarranjo interno da ATM, o conceito de terapia de segunda fase — onde alterações irreversíveis da oclusão como o ajuste oclusal, próteses, tratamento ortodôntico ou cirurgias ortognáticas são indicadas — não parece justificado nesse momento.

Alterações Degenerativas da ATM

As alterações degenerativas da ATM são caracterizadas pela presença de sinais clínicos de ruídos articulares contínuos, na forma de crepitação. De acordo com o RDC/TMD, a crepitação pode estar acompanhada de artralgia, sendo denominada osteoartrite ou, na ausência de dor, osteoartrose.
A artralgia temporomandibular é caracterizada por dor pré-auricular espontânea ou dor provocada pela palpação e/ou função, com dor ocasionalmente referida à região temporal. Pacientes com osteoartrite são mais consistentemente caracterizados por longos desvios da posição de relação cêntrica para a posição de máxima intercuspidação habitual (MIH), sobressaliência aumentada e tendência à mordida aberta anterior, com risco aumentado para essas desordens estando predominantemente associado a variações extremas dessas condições.
Mudanças morfológicas na ATM que não estão associadas a nenhuma alteração significativa na dinâmica articular ou na oclusão caracterizam o remodelamento funcional. Esse remodelamento se torna disfuncional quando afeta adversamente a função articular mecânica ou a oclusão, sendo dessa forma caracterizada pela redução volumétrica na cabeça do côndilo, redução no tamanho do ramo, retrusão mandibular progressiva em pacientes adultos, ou talvez a redução na taxa de crescimento entre crianças. Essa condição pode ser gerada por estresse mecânico excessivo ou mantido aplicado nas estruturas articulares, o qual ultrapassa a capacidade de adaptação a essas mudanças.
Múltiplas variáveis, incluindo fatores genéticos e ambientais, como comportamentos ou hábitos respiratórios danosos, demonstraram poder influenciar a taxa de crescimento facial. Os dados acima relacionados sugerem que o remodelamento não-funcional pode também produzir deficiências no crescimento mandibular, o que conjuntamente com as outras variáveis mencionadas poderiam ser fatores contribuintes para o posicionamento final da mandíbula, podendo gerar más oclusões específicas, como, por exemplo, a mordida aberta anterior.
O equilíbrio entre eventos catabólicos e anabólicos parece ser altamente individual e sujeito a um vasto número de fatores funcionais e genéticos. Existe, todavia, a necessidade de um melhor entendimento em relação ao funcionamento normal, biológico e biomecânico da ATM, incluindo a determinação de variáveis associadas a modificações e incrementos nos níveis de pressão articular. Essas variáveis podem levar a estímulos microtraumáticos do tecido e, consequentemente, ao desencadeamento de uma série de eventos que poderia levar à degeneração e dor articular. Citocinas pró-inflamatórias foram isoladas em amostras do líquido sinovial retirado da ATM de indivíduos sintomáticos, devido à recente evidência demonstrando que os radicais livres podem estimular a síntese celular dessas proteínas pelo aumento da expressão dos genes responsáveis.
As citocinas predominantemente envolvidas nos processos degenerativos intra-articulares ão a interleucina-1 beta (IL-1beta), a interleucina-6 (IL-6) e o fator alfa de necrose tumoral TNF-alfa). Conjuntamente, essas citocinas estimulam  quebra do ácido aracdônico causando, assim, um importante efeito pró-inflamatório, bem como o desencadeamento da síntese e a ativação de metaloproteinases, que são responsáveis pela quebra da estrutura extracelular, aumentando o processo de degeneração articular.

Implicações Terapêuticas

No que se refere a terapias, estudos clínicos randomizados são especialmente úteis e, dessa forma, requeridos pelo NIH como padrão-ouro (gold standard) na avaliação da eficácia do tratamento. São ainda mais importantes em condições como a DTM, onde a intensidade da dor pode variar com o tempo e efeitos placebo e não-específicos podem ser tão importantes quanto em outras condições de dor crônica.
Considerando os diversos estudos que avaliam a eficácia terapêutica das placas estabilizadoras para o controle da dor por DTM, de acordo com Ekberg et al., as diferenças levantadas nesses estudos podem ser decorrentes da inclusão de diferentes subgrupos de DTM dolorosa, como a dor miofascial e a artralgia temporomandibular, sendo demonstrados nesse segundo grupo resultados terapêuticos mais expressivos no monitoramento a curto e longo prazos.
A placa estabilizadora de acrílico com superfície plana pode, contudo, continuar a ser recomendada no tratamento da artralgia da ATM, apesar de ainda requerer melhor esclarecimento sobre os mecanismos fisiológicos envolvidos em seu efeito terapêutico, como a redução do estresse mecânico relacionado às parafunções.
Outro estudo, que avaliou a pressão intraarticular durante os movimentos funcionais e parafuncionais, também analisou, em 22 dos seus pacientes, a pressão intra-articular quando pressionada contra dispositivo interoclusal, o qual aumentou uniformemente o plano de oclusão de maneira a se reduzir a força aplicada à ATM. Uma diminuição da pressão intra-articular foi observada em torno de 80% com uma variação de 0-40mmHg.
No que se refere à integridade funcional da cartilagem articular, essa é determinada pelo balanço entre a síntese da estrutura extracelular pelos condrócitos e sua quebra. Glicosaminas são encontradas normalmente nos tecidos humanos e participam diretamente da síntese de substâncias que são fundamentais para a manutenção da integridade e das funções articulares — como as glicosaminoglicanas, proteoglicanas e ácido hialurônico —, apesar do mecanismo preciso dessa participação ainda não ter sido determinado. Na osteoartrite, esse balanço é interrompido pelo aumento da presença de enzimas, como as metaloproteinases, capazes de quebrar a estrutura extracelular. Resultados preliminares de experiências laboratoriais indicam que o suplemento alimentar sulfato de glicosamina pode estimular os níveis proteicos da estrutura extracelular e, ao mesmo tempo, inibir a produção e a atividade enzimática das metaloproteinases nos condrócitos das articulações com osteoartrite.
As glicosaminas foram avaliadas quanto à sua eficácia em reduzir a dor relacionada à osteoartrite em outras articulações além da temporomandibular e quanto ao seu potencial para modificar o curso da doença. Em experimentos clínicos de curta duração, obteve-se melhora dos sintomas em pacientes com osteoartrite e resultados promissores na alteração do progresso da doença após acompanhamento de três anos, apesar desses achados ainda não terem sido cuidadosamente analisados.
Os efeitos específicos do alívio da dor associados ao uso do sulfato de glicosamina são provavelmente decorrentes de suas propriedades anabólicas na cartilagem. Esses efeitos, que modificam o estado degenerativo da doença, não são observados com o uso de analgésicos de rotina e promovem um benefício substancial.

Conclusões

Apesar das más oclusões serem historicamente consideradas como fatores de risco para o desenvolvimento de DTM, incluindo as predominantemente articulares, em muitos casos a associação estabelecida entre essas variáveis parece ter direções opostas. Assim, investigações clínicas prospectivas e laboratoriais direcionadas a aspectos relacionados à etiologia dessas condições, principalmente nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, podem guiar os passos seguintes da terapia no futuro. De acordo com Legrell e Isberg, os achados da indução de redução do ramo da mandíbula, secundários ao deslocamento anterior do disco articular, indicam que o reposicionamento do disco em crianças e adolescentes jovens pode ter mais sentido do que previamente se pensava.
Em vista disso, o uso de dispositivos ortopédicos para o avanço da mandíbula, como o aparelho de Herbst — que demonstrou eficiência em melhorar o posicionamento prévio do disco articular deslocado em estágios iniciais desse processo — deve ser testado por meio de estudos clínicos randomizados adequados.
Enquanto o uso terapêutico dos suplementos alimentares, como o sulfato de glicosamina, parece ser uma alternativa segura ao uso de drogas antiinflamatórias normalmente usadas no controle da dor relacionada à osteoartrite da ATM, da mesma forma que para as placas estabilizadoras, a evidência da sua eficácia para a maioria dos pacientes com DTM ainda não foi completamente estabelecida.


Artigo na íntegra via Scielo:

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