quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Bruxismo do sono




Artigo publicado na Revista Dental Press de Ortodontia e Ortopedia Facial, no ano de 2008 (Maringá, v. 13, n. 2, p. 18-22, mar./abr.), pela autora Cristiane Rufino de Macedo, mestre e doutoranda pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e clínica geral particular.

O bruxismo do sono é uma atividade oral caracterizada pelo ranger ou apertar dos dentes durante o sono e que, geralmente, está associada com despertares curtos com duração de 3 a 15 segundos, conhecidos como microdespertares. Embora o termo bruxismo origine-se do grego brychein, que significa ranger de dentes, outros nomes têm sido usados para descrever este quadro: neurose do hábito oclusal, neuralgia traumática, bruxomania, friccionar-ranger de dentes, briquismo, apertamento e parafunção oral. 

O bruxismo do sono se diferencia do bruxismo diurno por envolver: distintos estados de consciência, isto é, sono e vigília; e diferentes estados fisiológicos com diferentes influências na excitabilidade oral motora. Assim, o bruxismo diurno é caracterizado por uma atividade semivoluntária da mandíbula, de apertar os dentes enquanto o indivíduo se encontra acordado, onde geralmente não ocorre o ranger de dentes, e está relacionado a um tique ou hábito. Já o bruxismo do sono é uma atividade inconsciente de ranger ou apertar os dentes, com produção de sons, enquanto o indivíduo encontra-se dormindo. O bruxismo do sono também é chamado de bruxismo noturno, mas o termo mais apropriado é bruxismo do sono, pois o ranger de dentes pode também se desenvolver durante o sono diurno.
O bruxismo é classificado como primário ou secundário. O bruxismo primário, por ser idiopático, não está relacionado a nenhuma causa médica evidente, clínica ou psiquiátrica. Esta forma primária parece ser um distúrbio crônico persistente, com evolução a partir do seu aparecimento na infância ou adolescência para a idade adulta. Já o bruxismo secundário está associado com outros transtornos clínicos: neurológico, como na doença de Parkinson; psiquiátrico, nos casos de depressão; outros transtornos do sono, como a apnéia; e uso de drogas, como as anfetaminas.
A prevalência exata do bruxismo do sono na população é imprecisa e subestimada. Isto ocorre porque os estudos epidemiológicos são baseados em populações e metodologias diferentes. Por exemplo, o relato de indivíduos que dormem sozinhos e não têm consciência dos sons produzidos durante o seu sono, pode ser diferente dos questionários preenchidos por portadores ou familiares com diferentes definições clínicas e diferente sintomatologia. Embora existam estas limitações, estudos têm mostrado que a taxa de prevalência em crianças maiores de 11 anos de idade é a mais alta, variando entre 14% e 20%. Nos adultos jovens, entre 18 e 29 anos de idade, é de 13%, diminuindo ao longo da vida para 3% em indivíduos acima de 60 anos de idade. A prevalência na população idosa deve ser maior que a estimada, já que as próteses totais em acrílico previnem os sons de ranger de dentes. Não tem sido encontrada diferença de gênero para a ocorrência do bruxismo do sono.
Vários são os fatores de risco associados ao bruxismo do sono: idade, tabaco, álcool, cafeína, ansiedade, estresse, transtornos psiquiátricos e do sono, drogas e disfunções temporomandibulares. A idade representa um fator de risco dominante, pois o bruxismo do sono diminui com o avanço da idade. O tabaco é considerado um fator de risco moderado para desenvolver bruxismo do sono. Fumantes apresentam risco aumentado em duas vezes de desenvolverem o bruxismo do sono. Indivíduos que apresentam bruxismo do sono têm de três a quatro vezes mais chances de desenvolver dor orofacial, sons articulares e travamento temporomandibular.
A etiologia do bruxismo do sono ainda não está completamente esclarecida. Nenhum marcador genético foi encontrado para a transmissão dessa condição. Várias hipóteses têm surgido para explicar a gênese do bruxismo do sono: fatores morfológicos, fatores psicológicos e modulação de neurotransmissores.
No passado, os fatores morfológicos, como as características oclusais e a anatomia das estruturas ósseas da região facial, eram considerados as principais causas do bruxismo. No entanto, estudos com maior rigor metodológico não confirmaram esta hipótese.
Atualmente, sugere-se que o bruxismo do sono seja parte da resposta do microdespertar e, possivelmente, seja modulado por vários neurotransmissores no sistema nervoso central, principalmente pelo sistema dopaminérgico.
Várias atividades motoras orofaciais ocorrem durante o sono, tais como: engolir, movimentos de lábio e língua, exalar de maneira audível uma respiração profunda, produzir um som gutural, entre outras. A atividade motora orofacial mais freqüentemente observada durante o sono é a atividade muscular mastigatória rítmica (AMMR) do músculo masseter. A AMMR quando associada ao ranger de dentes é denominada bruxismo do sono. Os episódios de AMMR com ausência de ranger de dentes estão presentes em 60% dos indivíduos normais, mas também em vários distúrbios do sono, como sonambulismo e terror noturno.
A qualidade e a quantidade de AMMR estão alteradas nos indivíduos portadores de bruxismo do sono. A freqüência de AMMR no bruxismo do sono está três vezes aumentada. Nos portadores de bruxismo do sono cada episódio de AMMR possui 70% a mais de contrações, sendo que a amplitude dessas contrações é 60% maior, enquanto a duração é cerca de 40% menor. Isto sugere que AMMR, nestes indivíduos, é uma atividade mais potente.
Os episódios de AMMR, com ou sem ranger de dentes, podem ocorrer após eventos fisiológicos. Cerca de 90% dos episódios de AMMR são associados a alterações do eletroencefalograma (EEG) e eletromiografia (EMG) relacionadas aos microdespertares. Estes eventos fisiológicos iniciam de 4 a 8 minutos antes de ocorrerem os episódios de AMMR. Nesse momento há uma mudança no balanço dos sistemas simpático e parassimpático. Ocorre um aumento da atividade do sistema simpático autonômico-cardíaco e uma diminuição da atividade do parassimpático. Tem sido observado que, 4 segundos antes dos episódios de AMMR, há um aumento da atividade alfa e delta do EEG. Logo a seguir, ocorre uma taquicardia iniciada com a primeira batida cardíaca 1 segundo antes do AMMR. Há o aumento do tônus do suprahióide 0,8 segundos antes do início, que provavelmente é o responsável pela abertura da mandíbula e da via aérea e, finalmente, ocorre a AMMR com a alteração do EMG nos músculos masseteres, com ou sem ranger de dentes.
A incidência do microdespertar está associada à alta freqüência da atividade muscular mastigatória. A magnitude dos episódios de AMMR - como início mais rápido da aceleração do ritmo cardíaco, maior atividade do EMG e uma maior força do contato dentário com ranger de dentes - é o que difere os indivíduos com bruxismo do sono dos indivíduos sem.
Além dos microdespertares, há indícios da participação de substâncias neuroquímicas na gênese do bruxismo. Em um ensaio clínico controlado, Lobbezoo et al. demonstraram, por meio de polissonografia, que o uso da levodopa (precursor da dopamina) resultou em diminuição significante, de cerca de 30%, do bruxismo do sono. Ainda que não esteja claro o papel da serotonina na fisiopatologia do bruxismo, drogas que são inibidoras seletivas da receptação da serotonina - tais como a fluoxetina, sertralina, paroxetina - têm sido apontadas como causadoras do ranger de dentes.
Clinicamente, o diagnóstico é baseado no relato de ranger de dentes ocorrido durante o sono associado à dor ou tensão nos músculos da face ao acordar. O desgaste anormal dos dentes e a hipertrofia do masseter são sinais que ajudam no diagnóstico. Entretanto, a confiabilidade desses achados é duvidosa, pois o desgaste dentário pode ter ocorrido anteriormente ao evento do bruxismo e a hipertrofia pode ter sido secundária ao hábito de apertamento voluntário do indivíduo.
O diagnóstico clínico pode ser complementado pela polissonografia, que irá identificar os episódios de bruxismo durante a noite de sono. É importante que esse exame tenha - além dos canais de eletroencefalograma, eletro-oculograma e eletromiografia - o registro audiovisual, para que seja observado o som de ranger de dentes e excluídas outras atividades bucomandibulares - tais como salivação, deglutição, mioclonias, tosse, vocalização - que representam mais de 30% das atividades bucais durante o sono e que podem ser confundidas com os episódios de bruxismo do sono. 
Atualmente, não existe nenhuma estratégia específica, tratamento único ou cura para o bruxismo do sono. Diferentes linhas de tratamento têm sido propostas: tratamentos farmacológicos, psicológicos e odontológicos. O tratamento farmacológico é utilizado para casos agudos e graves e consiste no uso dos fármacos por um período curto de tempo. Drogas do tipo benzodiazepínicos, anticonvulsivantes, beta-bloqueadores, agentes dopaminérgicos, antidepressivos e relaxantes musculares são as mais utilizadas, mas não há nenhuma droga de primeira eleição. O tratamento psicológico consiste na terapia comportamental baseada na higiene do sono, no controle do estresse, biofeedback e em técnicas de relaxamento, mas nenhum desses tratamentos é baseado em fortes evidências. O tratamento odontológico para o bruxismo inclui ajuste oclusal, restauração da superfície dentária, tratamento ortodôntico e placas oclusais.
Atualmente, o tratamento odontológico mais utilizado é o das placas oclusais. Nos EUA foi estimada a fabricação de 1 milhão e 200 mil placas oclusais por ano, a um custo de 275 dólares por placa, estima-se um total de 330 milhões de dólares gastos por ano na sua produção25. Alguns estudos associam o uso da placa oclusal com a diminuição da atividade EMG durante o sono, melhora na redução dos sintomas e prevenção do desgaste oclusal. Contrariamente, outros autores encontraram um aumento da atividade muscular em 20% para as placas oclusais rígidas e 50% para as flexíveis, e afirmam que a única ação das placas seria de proteção dos dentes ao desgaste.
A efetividade das placas oclusais foi avaliada por meio de uma revisão sistemática Cochrane, que teve como objetivo identificar, analisar e comparar os dados de todos os estudos clínicos randomizados publicados e não publicados na literatura nacional e internacional, sem restrição de idiomas. As placas oclusais foram comparadas com outras placas como palatal, TENS e ao não tratamento nos indivíduos com bruxismo do sono. Após o mapeamento completo do conhecimento, identificação e análise dos estudos, Macedo et al. concluíram que as evidências são insuficientes para afirmar que a placa oclusal é efetiva para o tratamento do bruxismo do sono e que a indicação ou não do seu uso é questionável quanto aos desfechos do sono (episódios de bruxismo, sons de ranger de dentes, microdespertar, despertar, eficiência do sono, tempo total de sono), mas pode ser que haja algum benefício para o desgaste dentário.
A falta de evidências nos tratamentos para o bruxismo do sono não nos permite apenas contemplar esse distúrbio como algo que ainda precisa ser desvendando. Diante da falta de evidências quanto à efetividade dos tratamentos existentes para o bruxismo do sono, a decisão clínica do tratamento a ser realizado deve ser tomada em conjunto, baseada na experiência profissional aliada ao desejo do paciente.
Há necessidade de novos estudos para testar a efetividade dos tratamentos para o bruxismo do sono. O ensaio clínico randomizado é o desenho de estudo mais adequado para testar terapias que podem ser comparadas com outras. A metodologia rigorosa - como cálculo para determinação do tamanho da amostra, para aumentar o poder do estudo em estimar o efeito e a utilização dos guidelines, produzidos pelo grupo CONSORT - pode melhorar a qualidade dos ensaios clínicos que proporcionarão novas respostas às nossas dúvidas sobre o bruxismo do sono.


Artigo na íntegra via Scielo:

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